Você ainda acredita no “mapa da língua”?
O paladar humano tem uma história muito mais complexa e atrativa do que se imagina…
No que diz respeito à fisiologia dos sentidos, reconhece-se o imenso papel da ciência, principalmente pelo desenvolvimento de tecnologias avançadas para o estudo da biologia a nível molecular e relações estrutura-atividade (SAR – Structure-activity relationship).
[1] Pesquisas genéticas com o sistema gustativo já haviam sido iniciadas há anos, desde que o químico americano Arthur Fox e o geneticista Lawrance H. Snyder, começaram a verificar a relação de provadores e não-provadores para uma substância amarga chamada PTC (feniltiocarbamida) [i]. Já no final dos 90, o grupo de Charles Zuker, da Universidade da Columbia, nos Estados Unidos, conseguiu desvendar algo ainda mais importante: os tipos de receptores para os gostos básicos do paladar humano[ii].
Esses receptores se ligam às substâncias químicas solúveis em água presentes em alimentos e bebidas, como, por exemplo, açúcares, sais, cafeína, vinagre e glutamato monossódico. Eles foram encontrados nas papilas gustativas, palato e outros órgãos [iii] e representam, até o momento, os chamados cinco gostos básicos: doce, salgado, amargo, azedo e umami (o gosto “saboroso” proporcionado por aminoácidos, como o glutamato e nucleotídeos, inosina-5’-monofosfato e guanosina-5’-monofosfato)[iv].
Ao contrário do que se pensava, os receptores para os gostos básicos estão espalhados por todo o epitélio gustativo e palato e não apenas em regiões específicas da língua, como interpretava o cientista alemão David Pauli Hänig, que defendeu o “mapa da língua” em 1901 e ganhou mais popularidade na década de 40, após publicações do psicólogo Edwin G Boring, professor da Universidade de Harvard[i].
Sustenta-se a hipótese de que para os gostos salgado e ácido, receptores ionotrópicos, ou seja, que interagem com íons sódio (Na+) e hidrogênio (H+), respectivamente, despolarizam a membrana diretamente e excitam as células gustativas. Já para os gostos doce, amargo e umami, a interação ocorre após a ligação das substâncias específicas com receptores acoplados à proteína G (GPCR) [2]. Esses últimos são nomeados de TR (sigla para taste receptor), sendo os T1R2 e T1R3, representantes para o gosto doce, T1R1, T1R3 e mGluR4 para o gosto umami e T2Rs para o gosto amargo [iv].
Após a despolarização das membranas das células gustativas, as mesmas se encontrarão carregadas eletricamente e, consequentemente, excitarão as inervações gustativas e transmitirão sinais, até que a informação chegue ao córtex gustativo cerebral, que identificará cada modalidade gustativa.
Além de todos os trabalhos genéticos, ainda se pode considerar estudos filosóficos, como Nicola Perullo [v], que defende a hipótese de que: “A percepção gustativa não segue um percurso evolutivo linear e irreversível, mas, ao contrário, de reversibilidade e de circularidade, que pode ter diversas caracterizações”.
Ao levar em consideração que a experiência gustativa pode ser reversível, porém inconstante, pois pode se modificar conforme a sua exposição e ambiente, pergunta-se novamente: “Você ainda acredita que podemos mapear a nossa língua e nossas experiências”?
[1] SAR/QSAR (Structure-activity relationship / Quantitative structure-activity relationship): são modelos computacionais utilizados para fazerem previsões sobre as propriedades físico-químicas ou descritores moleculares teóricos a partir de sua estrutura química dos compostos.
[2] Proteína G: As proteínas G são assim chamadas, pois os genes que as codificam são membros de uma superfamília que se ligam a nucleotídeos guanina com alta afinidade e especificidade.
[i] Trivedi BP. The finer points of taste. Nature outlook 2012; 486 (7403): S2-S3.
[ii] Adler E, Hoon MA, Mueller KL, Chandrashekar J, Ryba NJ , Zuker CS. A Novel Family of Mammalian Taste Receptors. Cell 2000;100(6):693-702.
[iii] Krasteva-Christa G, Weihong L, Tizzano M. Extraoral Taste Receptors. Neurosci Biobehav Psy 2020. In press.
[iv] Roper SD, Chaudhari N.Taste buds: cells, signals and synapses. Nat Rev Neurosci. 2017; 18(8): 485–497.
[v] Perullo N. O gosto como experiência. São Paulo: SESI-SP editora, 2013.